13.10.12




Jardins de Bruma

A Pintura de Luís Melo





Assim me vem, da bruma das distâncias,
plena de pormenor:
o lago, o barco de papel, esse jardim,
o inquieto rosto de menina,
mais o olhar triste e ansioso que imagina
o lago – o mar, a brisa – vendaval,
que impele e leva o barco ao porto fabuloso
onde a vida é diferente e irreal.

Maria Manuela Couto Viana – “Ingénuo Tema” – Menina Mansa e Outras Poesias.



Na trans-lucidez do olhar das personagens da pintura de Luís Melo desenham-se os jardins de bruma da nossa infância, domínio encantado de sensações perdidas que regressam, ecos nimbados de ouro, vozes secretas de um veludo que se ruboriza de esplendores matinais. Olhares lúcidos, lânguidos e transparentes de meninos que não cresceram e não crescerão nunca, tempo cristalizado do mito, infância florescendo numa Primavera imóvel, cheia de melancolia.

    Um espaço de pura evasão e inexpugnável doçura, uma fortaleza delicada, um berço de subtis delícias, sem tréguas, prolongando a esperança, aguardando a surpresa e a explosão de frutos já outonais. Flora miraculosa crescendo da sombra, coração da luz e do silêncio, desenhando os seus ritmos, os seus vértices de encantamento. Realidade adormecida, flor do sonho, irreal jardim da bruma com as suas flores abrindo pétalas de silêncio dourado. Contenção, pausa, encantamento, um silêncio mais doce, uma doçura lenta e audaciosa, escrita suspensa de grafias elementares, musicais.

    A infância é um lugar de imagens e de visitação, de sensações nascentes, cálidos milagres. Nos braços de cristal da minha infância atravessei os desertos da alma e as clareiras da ausência. Entretinha-me vendo os desenhos da luz e os arabescos da espuma mais branca do que a brancura, o mundo vinha à existência numa gota de água e nascia no espanto de um desejo tão puro e tão forte como o ímpeto da vida. O irromper da luz e o seu ocaso tinham o mesmo perfume. O mar era berço e dança infinita e as suas dádivas enchiam os meus olhos de estrelas e os minhas mãos de conchas e pequenos universos. A infância, alma cristalina, raiz amanhecida, “porto fabuloso onde a vida é diferente e irreal”, ponto onde tudo começa, intemporal início, espalha os seus vestígios de oiro, a sua prata nupcial, e realidade e sonho vêm à existência num momento único e eterno. Irrealidade é então igual a real, ao real mais real dos poetas e dos inocentes. Saibamos apreciar esse esplendor oculto, essa lição de sabedoria dos momentos felizes, aqueles que não terminam nunca e que a infância, a nossa, guarda, aguarda. Saibamos hoje decifrar o silêncio, o ouro, a prata, o jardim de bruma que Luís Melo uma vez mais, generosamente, cultivou para nós. Não apenas para nosso prazer e deleite, mas para nos fazer rasgar os gestos automáticos do quotidiano, abrindo-nos as portas de um reino que é também o seu e onde os nossos passos há muito ficaram gravados.

    Reino do olhar virgem e do bater do coração ao ritmo do universo. Reino de descoberta e contemplação, lago profundo dos mil caminhos do olhar, onde se misturam a terra, o ar, a água, o ouro, fogo líquido, tesouro submerso e visionário. Reino de um silêncio cheio de promessas, de uma alegria prometida.


                                Maria João Fernandes
       

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